“Débito ou crédito? Vai parcelar?” Com toda certeza, essas são as perguntas mais repetidas nas lojas brasileiras. E não é para menos: de acordo com o BCB (Banco Central do Brasil), em junho de 2022, o país tinha 190,8 milhões de cartões de crédito ativos, o que representava quase o dobro da população economicamente ativa (107,4 milhões).
Mas atenção, a segunda pergunta – “vai parcelar?” – pode estar com os dias contados. É que o Executivo, o Banco Central, operadoras de cartão, instituições financeiras e o varejo estão discutindo o fim do crédito rotativo e a diminuição do parcelamento sem juros no cartão de crédito. O BCB acredita que as medidas podem reduzir a inadimplência no país.
“Quando o cliente deixa de pagar o valor total da fatura do cartão, o valor não pago se torna uma modalidade de empréstimo, chamada ‘rotativo do cartão de crédito’. Essa é uma das operações de crédito com maiores taxas de inadimplência e custo no mercado”, explica Angelo José Mont Alverne Duarte, chefe do Decem (Departamento de Competição e de Estrutura do Mercado Financeiro) do Banco Central.
No entanto, qualquer tipo de restrição às compras parceladas sem juros colocaria em risco o faturamento do Varejo, sobretudo, em um momento já difícil para as vendas. É o que afirmam representantes do setor de Comércio e Serviços, uma vez que o parcelamento é um dos motores de vendas no segmento. “O movimento já está fraco. Se limitar o parcelamento, vai ficar pior ainda”, disse Mikael Kim, dono de uma loja de vestuário na capital paulista, ao jornal Estadão.
De acordo com o próprio Banco Central, as vendas por meio do cartão de crédito respondem por 40% do consumo no Brasil. Merula Borges, especialista em Finanças da CNDL (Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas), afirma que é possível contornar o fim do rotativo do cartão de crédito sem limitar o parcelamento sem juros. Para ela, uma alternativa seria revisar os parâmetros para a concessão de cartões de crédito.
“Estamos tratando do fim de uma modalidade que seria prejudicial para o varejo, mas não estamos olhando os fatores de concessão de cartões de crédito”, comentou Merula Borges, em entrevista para o Estadão. “A mesma instituição que concede o crédito muito exagerado é a que se beneficia do não pagamento da fatura do cartão depois”, pontuou.
Para Roberto Folgueral, perito judicial, contador e vice-presidente da FCDL-SP (Federação das Câmaras de Dirigentes Lojistas de São Paulo), a principal preocupação é o poder de barganha dos bancos. “Estão deixando para o varejo e o setor financeiro resolverem o problema. Mas não deveria ser assim, porque nessa queda de braço, sabemos quem tem mais chances de sair vencedor”, alertou em conversa exclusiva com a equipe do portal Varejo S.A..
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, declarou na última semana que as mudanças estudadas para o rotativo do cartão de crédito não podem comprometer as vendas do Varejo. “Nós herdamos uma taxa de juros absurda do rotativo e vamos ter que equacionar (essa questão), mas (a solução) não passa por prejudicar o consumidor que está pagando as contas em dia”, ressaltou.
Especialistas dizem ainda que limitar o parcelado sem juros pode produzir efeitos diferentes aos que o governo deseja, como afetar a capacidade de pagamento dos consumidores e levar mais brasileiros ao rotativo.
“Pode até ser que com essa medida, o governo consiga controlar a inflação, mas o custo social será infinitamente maior, porque as lojas vão ter queda nas vendas e acabarão demitindo funcionários, sem falar que comprarão menos da indústria, que terá queda na produção, quer dizer, uma reação em cadeia negativa”, alerta o contador.
Linha de crédito mais cara do país
O rotativo do cartão é uma linha de crédito e tem juros médios de mais de 437% ao ano, mas as instituições chegam a cobrar quase 1.000%, de acordo com ranking do Banco Central. É acionado quando o consumidor não consegue pagar a fatura do cartão de crédito integralmente. Isso significa que a parcela que deixou de ser paga fica para o mês seguinte e sobre ela recaem os juros do crédito rotativo.
“Um sistema com mais de 430% de juros ao ano, na base de 15% ao mês, é absurdo, especialmente, se considerarmos que a Selic é de cerca de 13% ao ano. Eu entendo que o risco e a incerteza da tomada de crédito sejam um vetor positivo para o aumento da taxa, mas nessa proporção de mais de 12 vezes é um tanto quanto absurdo”, afirmou Folgueral.
Apesar de reconhecer que é preciso encontrar uma saída para o crédito rotativo, o perito judicial não acredita no seu fim. “O modelo do rotativo é consequência da própria natureza do mercado, não só nacional, mas universal”, acrescentou.
Por ser a linha de crédito mais cara do país, em 2017, o CMN (Conselho Monetário Nacional) do Banco Central determinou que o crédito rotativo só pode ser utilizado por um mês. Se o consumidor não conseguir quitar a dívida no mês seguinte, a instituição deve oferecer ao consumidor o parcelamento da dívida em uma linha de crédito com juros mais baixos.
“Seis anos depois, voltamos à estaca a zero com o mesmo assunto”, destacou o contador, lembrando ainda que, apesar de não estar definida como seria a limitação das compras parceladas sem juros, fala-se na possibilidade de cobrar algum tipo de tarifa a fim de desestimular as transações na modalidade.
“Primeiro, que a tarifa é o juro disfarçado – só estão mudando o nome –; segundo, o endividamento não se deve à quantidade de parcelas que o consumidor tem no cartão. Quando se compra a prazo, o limite do consumidor fica reduzido até que ele quite as parcelas. Nesse período, não há como fazer mais dívidas no cartão, e isso é totalmente diferente do rotativo”, avaliou Roberto Folgueral.
Além disso, o vice-presidente da FCDL-SP explica que, hoje, quem efetivamente arca com o custo do parcelamento é o comerciante. “É o varejista quem financia para o comprador dele dividir o pagamento. Se ele quiser antecipar o recebível, vai ter que pagar juros para a instituição financeira”, explicou. “Então, a meu ver, também estão querendo receber do consumidor aquilo que o lojista já suporta (financia)”, denuncia. “Isso não pode prosperar!”, acrescenta.
A Febraban (Federação Brasileira de Bancos) divulgou, recentemente, que o setor financeiro não tem “qualquer pretensão de acabar com as compras parceladas no cartão de crédito”. A intenção dos bancos, segundo o comunicado, é estabelecer um novo desenho para o parcelamento, adotando um modelo que considere o tipo de bem a ser adquirido e o prazo da operação.
Cultura de compra
Os brasileiros das classes baixa e média utilizam as compras parceladas, especialmente, para adquirir bens e serviços que não conseguiriam sem o parcelamento, e isso torna a modalidade de pagamento fundamental para a viabilidade de vários negócios do comércio. É o caso de lojistas do centro de São Paulo entrevistados pelo Estadão, que dizem que o parcelamento representa grande parte das transações feitas nos seus estabelecimentos.
Kátia Maria de Jesus, dona de uma loja de roupas na Rua José Paulino, no bairro do Bom Retiro, região central da capital paulista, contou para o jornal que o pagamento parcelado sem juros já está completamente integrado aos hábitos de consumo da clientela. “Os clientes nem perguntam se é com juros ou sem. Eles já partem do pressuposto que é sem juros sempre”, disse.
O volume de vendas na modalidade representa cerca de 90% do total de transações em seu estabelecimento, que divide em duas vezes compras já a partir de R$ 50. “Em vez de comprar R$ 300 para parcelar, o cliente não vai comprar, porque não tem o parcelamento”, avaliou Kátia Maria.
O setor de material de construção também pode ser afetado se o parcelamento sem juros acabar, especialmente no segmento C e D. Uma fonte do portal UOL garante que, atualmente, quase a totalidade das reformas em imóveis familiares é financiada via parcelas no cartão de crédito.
As empresas aéreas também acompanham a discussão com interesse, pois esse também é o principal meio de venda de passagens para consumidores que ganham até 10 salários-mínimos, que representam 46% do total de passageiros. A modalidade também é bastante utilizada por quem ganha de 10 a 20 salários-mínimos para viagens ao exterior, por exemplo.
“O parcelamento sem juros é uma importante ferramenta de vendas para os varejistas. Sem essa arma, os comércios de pequeno porte vão acabar aumentando os preços e, com isso, haverá uma redução nas vendas”, afirma o contador.
Inadimplência no Brasil
Vale destacar que, em julho deste ano, 66,11 milhões de brasileiros estavam negativados, segundo Indicador realizado pela CNDL e o SPC Brasil (Serviço de Proteção ao Crédito), o que representa 40,51% da população adulta. Em termos de participação, o setor credor que concentra a maior parte das dívidas é o de Bancos, com 62,67% do total.
O BCB aponta que, em junho do ano passado, 84,7 milhões de clientes de cartões de crédito no Brasil possuíam saldo devedor (valor da compra, seja ela parcelada ou não, que ainda não foi pago pelo cliente e sobre o qual pode ou não incidir juros) com a operadora. O número é 30,9% maior do que o apurado em junho de 2019, que era de 64,7 milhões.
ABC do parcelamento no cartão de crédito
1. Tipos de parcelamento de compras
As compras podem ser parceladas com ou sem juros. No parcelamento com juros, o financiamento é feito pela instituição financeira, e a taxa adicional cobrada é explícita no valor da prestação e no custo final do produto. Nesse caso, o comerciante recebe de imediato o valor da compra, e o consumidor faz pelo cartão uma linha de crédito com pagamento parcelado.
Já no parcelamento sem juros, o comerciante não recebe de imediato todo o valor da compra. Na verdade, o montante vai sendo pago de acordo com a quantidade de parcelas em que a venda foi feita. O lojista tem como alternativa antecipar seus recebíveis futuros das vendas parceladas com uma taxa de desconto junto à credenciadora, ou seja, a empresa que fornece as maquininhas de cartões.
Segundo dados do Banco Central, essa taxa de antecipação gira em torno de 1,4% ao mês (a Selic está em 1,12% ao mês). Diante disso, o valor final da mercadoria no parcelamento sem juros carrega juros embutidos — subsidiados, inclusive, por quem não opta pelo parcelamento. Esse mecanismo fica mais claro quando um estabelecimento oferece ao cliente desconto no pagamento à vista como alternativa à compra parcelada sem juros.
2. Financiamento das compras do parcelado sem juros
O financiamento e o número de parcelas que serão ofertados pelo lojista passam por acordo com empresas de cartões de crédito. No acerto, é definida uma tarifa (MDR – Merchant Discount Rate) cobrada sobre as transações realizadas nos cartões de crédito ou de débito para um determinado número de parcelas. Essa taxa sustenta toda a cadeia e serve como garantia se o cliente não honrar o pagamento. O lojista paga o MDR para a empresa de maquininha de cartão, e esta, por sua vez, paga a tarifa de intercâmbio para o banco cujo cartão foi utilizado pelo comprador.
Nas compras na modalidade crediário à vista, essa tarifa de intercâmbio está em torno de 1,5%. No caso de compras parceladas, a tarifa de intercâmbio é mais alta do que a tarifa de compras à vista, podendo chegar a ser mais de 1% superior.
3. Antecipação de recebíveis
Para ter dinheiro em caixa, os lojistas recorrem à antecipação de recebíveis – recurso de crédito que permite às empresas receberem valores de venda antes do prazo previsto. Esse processo pode ser feito de duas maneiras, no geral.
Na primeira, o comerciante negocia diretamente com a credenciadora para receber antecipadamente os valores futuros transacionados por meio da maquininha de cartão. Como a credenciadora é uma instituição de pagamento, ela não tem autorização para dar crédito ao lojista, pode apenas antecipar o pagamento daquela dívida direta. Diferentemente de um empréstimo, neste caso o dinheiro é da própria empresa.
Em 2021, o Banco Central instituiu nova norma incluindo o modelo de câmara de recebíveis, no qual o lojista pode procurar no mercado a melhor condição para antecipar seus recebíveis futuros de cartão de crédito, gerando competição e simetria de informações.
Na segunda, o lojista oferece seus recebíveis como garantia para uma instituição financeira — que pode ser o emissor do cartão ou não — antecipar um montante de dinheiro em uma operação de crédito. O risco de inadimplência nesse caso, como em qualquer operação de crédito, fica com o banco.
Fonte: Varejo S.A. (com informações do Banco Central, Folha de São Paulo, G1, Estadão e Infomoney)